sábado, 1 de maio de 2010

O diabo no marketing das falsas igrejas

Em continuidade da discussão sobre as personagens Deus e o Diabo na obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, segundo a socióloga Maria das Dores Machado, "um dos papéis do Diabo, hoje, seria o de marketeiro. Utilizado pelas Igrejas sensacionalistas, Ele insere-se na competição religiosa, afinal trata-se de um mercado, e sua figura é explorada para ganhar adeptos". Observamos que a grande maioria da humanidade só freqüenta uma Igreja com o objetivo de livrar-se do mal, dos castigos eternos. Enfim, do inferno, onde o mal (Diabo) reina para todo o sempre. De acordo com a antropóloga Eliane Gouveia, em muitos programas religiosos exibidos nos meios de comunicação,
o demônio funciona como um chamariz.
A cura é prometida ao telespectador, se ele aderir à Igreja, que irá ensiná-lo a como se livrar dos males do demônio, o que demonstraria que O demônio é o principal instrumento da mídia para atrair fiéis, e quando o Diabo é colocado diariamente nos programas evangélicos, a audiência aumenta"
. Encontramos nos Evangelhos de Marcos e de Mateus, a raiz desse discurso proferido pela Igreja – Explicação da doença como resultado do pecado do homem –. Quando, da passagem da cura do Paralítico de Capernaum
, ao invés de Jesus dizer-lhe que estava curado, disse "Filho, perdoados estão os teus pecados"
. (Mc, 2:1-12; Mt, 9:1-8), resultando na crença de muitos, de que o salário do pecado é a morte
. Com base nisso, alguns até deixam de buscar a cura na medicina, acreditando que a fé possa salvá-los dos pecados, e em conseqüência curá-los da doença, como se sabe. Sobre isso, o narrador-evangelista, Saramago, usando o discurso ficcional, comenta: "os pecados são outra coisa, os pecados atormentam por baixo do que se vê, na são perna coxa nem braço tolhido, não são lepra de fora, mas são lepra de dentr
o" (p.402). Retomando o episódio da tentativa do Diabo, de voltar a ser um Anjo de Luz, não tendo, então, a sua proposta aceita por Deus, no texto de Saramago, o Diabo perde a batalha, e o narrador inverte parodicamente o texto bíblico do episódio da tentação
, numa escrita transgressora que engole e transforma o texto primitivo: articula-se sobre ele, reestrutura-o, mas, ao mesmo tempo, o nega
. É o próprio Diabo que afirma, "não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus
(...)" (p.393). A tentação, aqui, é invertida para um sentido positivo, de ter provocado a Deus para que mudasse os seus planos e desistisse de crucificar o próprio Filho, utilizando o bom senso, evitando o derramamento de sangue, sobre o qual conclui: "É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue" (p. 391). Nessa obra temos a imagem de um Deus que chega a caracterizar se pelo cinismo, ao revelar suas ambições de poder à custa do sacrifício de seu Filho – afinal, estava insatisfeito em ser o deus de um povo pequeníssimo
– queria alargar a influência, ser deus de muito mais gente
. Quando Jesus pergunta-lhe qual seria seu papel nesse plano, o Pai lhe responde: "O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé"
. E o narrador ainda comenta, ironicamente, que "as palavras mártir e vítima soaram prazerosamente
, saíram da boca de Deus como se a língua que dentro tinha fosse de leite e mel"
( p. 370), enquanto Jesus atemorizava-se e pensava em pedir-lhe que afastasse dele "o cálice de coquetel envenenado"
. Questionando o Pai, como seria essa morte, a resposta veio em tom de zombaria: "a um mártir convém-lhe uma morte dolorosa, e se possível, infame, para que a atitude dos crentes se torne mais facilmente sensível, apaixonada, emotiva"
(p.371). Ao que Jesus, contrariando, no texto deste Evangelho, a submissão com que nos fora apresentado nos Evangelhos Canônicos, insurge-se contra os caprichos do Pai, de maneira taxativa: "Rompo o contrato, desligo-me de ti, quero viver como um homem qualquer
(...)". Pobre Jesus iludiu-se achando que poderia evitar beber do cálice da amargura. Sem dó, nem piedade, o Pai o desilude: "Palavras inúteis, meu filho, ainda não percebestes que estás em meu poder (...). Tudo quanto a lei de Deus queira é obrigatório (...)"
(p. 371). É, portanto, a velha história recontada com uma lógica impecável, a lógica da boa ficção. Confirmando o que diz Perrone-Moisés: "Esse Deus é o supremo representante de todos os tiranos do mundo, e Jesus, o de todas as vítimas inocentes. Até mesmo o Diabo, nessa história, é menos cruel que Deus (...)". Na tentativa de não beber do cálice de fel, o Filho ainda questionou ao Pai: por que não ia ele próprio à conquista dos povos, talvez implicitamente dizendo, por que não se entregava ele mesmo à cruz, ao invés de sacrificá-lo. O Pai, então, respondeu-lhe que "não é eticamente correto um deus interferir no território do outro, para isso serve-se do homem (...) pau para toda colher, desde que nasce até que morre está sempre disposto a obedecer (...)" (p.372).

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