sábado, 16 de outubro de 2010

A Palavra que expulsa dos demônios.

O evangelho de hoje nos mostra Jesus expulsando um demônio. Numa época em que muitas igrejas evangélicas fazem de exorcismos um verdadeiro show e até mesmo grupos católicos não resistem à tentação de servir-se do Capeta para fazer um espetaculozinho (mau sinal quando o Diabo desperta mais a atenção que Cristo!) convém refletir sobre tema, e ver como Jesus mesmo lidava com a questão.

Olhar para Cristo e aprender dele como se faz para lidar com os demônios foi o que fizeram os maiores especialistas no assunto, os assim chamados Padres e Madres do deserto, antigos monges que buscaram na solidão o encontro com o Senhor e nela aprenderam a lutar e a vencer as ciladas do Maligno.

Esses monges perceberam também que existem diferentes tipos de demônios, com ataques diferentes em seu modo e em sua gravidade. Assim, o abade Sereno, "homem da mais alta santidade e de grande abstinência", que "refletia em sua pessoa o significado de seu próprio nome" [1] ensinou a São João Cassiano serem mais graves os males causados pelas tentações, que levam aos vícios, do que pela possessão propriamente dita: "Bem mais grave, porém, é a condição dos que, livres em seu corpo, são todavia vítimas de uma possessão mais perniciosa em sua alma. Isto é, tornaram-se prisioneiros dos vícios e das volúpias dos demônios. Pois, segundo o Apóstolo: Qualquer um se torna escravo daquele por quem é vencido (2Pd 2,19). Sua desgraça é tanto mais destituída de esperança quanto, nem sequer percebem que, tendo-se tornado joguete dos demônios, são atacados por ele ou já se tornaram sua propriedade" [2]. Babar, rolar no chã o e falar bobagens é muito feio, mas não se compara, em sua gravidade, ao condicionamento para o mal, ao hábito de pecar que pode se enraizar em nossas vidas.

Outro ensinamento importante que os Padres do deserto nos transmitiram, é a necessidade de se conhecer o nome, o tipo do demônio ou tentação que, naquele momento, ataca a alma; um mestre entre os monges do deserto, Evágrio Pôntico († 395, Egito), dizia ser necessário "dar um nome ao demônio". No caso do evangelho que ouvimos dizia-se tratar de um "espírito impuro" (Mc 1,23). Em, outra ocasião, Jesus mesmo iria perguntar o nome do demônio (Mc 5,9). Não se trata, evidentemente, de fazer um catálogo infernal, uma lista de nomes de espíritos maus (Adramelch, Alastor, Azazel, etc) como fizeram alguns autores [3]. Evágrio, grande conhecedor do assunto, chegou a classificar oito espécies de demônios que nos são bem conhecidos: gula, a luxúria, a cobiça, tristeza, ira, acídia, vaidade e orgulho. "O fato de identificar os demônios com os oito vícios mostra /.../ que na demonologia de Evágrio não se trata tanto de fenômenos extraordinários, como possessão, mas sim do elemento tenebroso e mau que cada pessoa experimenta em si, na luta contra as falsas atitudes interiores que procuram se estabelecer em nós, desta maneira criando obstáculos à nossa auto-realização e à nossa abertura para Deus. Evágrio descreve um por um os oito demônios que se encontram por detrás dos diversos vícios" [4]. "Dar um nome ao demônio" é importante porque "logo que designamos pelo nome um pensamento, uma intenção, um sentimento, uma paixão, nós ganhamos uma certa distância em relação a ele. Expressar nosso estado de ânimo interior é mais do que simplesmente saber. O conhecimento pode ficar em nossa cabeça, e assim, deixar de ter efeito. Mas quando nos referimos a um pensamento pelo nome, logo já o temos quase sob nosso controle" [5].

Esse conhecimento, porém, só se obtêm com "uma longe e honesta observação de si próprio. Logo que sejam entendidas as conexões entre pensamentos e sentimentos, logo que sejam descobertos os mecanismos que sempre de novo se processam dentro de nós, já terá sido dado o primeiro passo na luta contra os demônios. Quando alguém apenas se queixa de seus maus humores ou de suas fraquezas contra determinadas tentações, isto não adianta nada. O que importa é descobrir as causas dos maus humores. De que fatores externos eles dependem, de que disposições interiores? Quando conhecemos melhor aquilo que nos põe em perigo, também podemos proteger-nos com mais facilidade" [6].

No evangelho que ouvimos, Jesus, diferente de outros que até o microfone oferecem aos possuídos, não quer conversa com o demônio. "Cala-te" (Mc 1,25), é a primeira ordem que Ele dá. Não adianta "conversar" com a tentação, nem com o Diabo, "mentiroso e pai da mentira" (Jo 8,44). Se Eva tivesse cortado logo a conversa do tentador e não cometesse a barbaridade de colocar a voz do Diabo no mesmo patamar da voz de Deus, a ponto de ter de escolher entre as duas (Gn 3,1-5), não teria caído no pecado. Jesus, pelo contrário, não discutiu, não escutou argumentos, nem apresentou razões ao demônio, simplesmente mandou que ele se calesse.

Foi a Palavra do Senhor que fez o demônio calar e partir. Nós precisamos também dessa mesma Palavra para esconjurar os demônios que nos atormentam. A Palavra de Cristo nós encontramos, evidentemente nos Evangelhos. Mas, no processo de tornar nossa essa Palavra de Deus, os Padres do deserto perceberam que não basta simplesmente ler o Evangelho na hora da tentação, ou sortear um versículo, abrindo a Bíblia ao acaso, como quem tira uma carta do baralho. É preciso interiorizar a Palavra de Deus, para que ela seja nossa palavra no momento da tentação.

Para que isso seja possível, Evágrio desenvolveu o método chamado "antirrético". Nele, além da observação de si (para conhecer o demônio que o tenta), deve-se fazer uma leitura freqüente, paciente e continuada das Sagradas Escrituras. Nessa leitura, a Palavra de Deus é como que absorvida, permitindo que o Senhor revele a palavra sagrada, frase ou versículo da Bíblia, que deverá ser usado como arma contra o ataque de determinado demônio. Não se trata de buscar nas Sagradas Escrituras uma fórmula mágica que espante as tentações, mas de uma leitura freqüente, que permite a interiorização da Palavra de Deus, a qual depois será usada contra o demônio, através de uma pequena citação cheia de sentimento, de emoção (Evágrio dizia "cheia de ira").

Evágrio dava exemplo de palavras que ele mesmo extraíra da Bíblia para usar nos momentos de tentação. Contra o demônio da luxúria (imoralidade), "contra os seus pensamentos impuros que se demoram muito tempo e que freqüentemente fazem surgir em nós imagens abomináveis e prendem o espírito por meio de desejos e paixões vergonhosas (ele dizia): ‘Afastai-vos de mim, malfeitores, porque o Senhor ouviu a minha súplica' (Sl 6,9s)" [6] "Contra o demônio que me lembra os pecados de minha juventude: ‘Quem está em Cristo este é uma nova criatura. O que é velho passou e um novo mundo se fez' (2Cor 5,17)"[7]. Porém, mais importante que conhecer os textos que outros usavam, é a própria pessoa ler atentamente a Palavra de Deus e descobrir nela as passagens que deve usar no momento da tentação.

A luta contra as tentações, contra os demônios, faz parte de nossa vida cristã. Um antigo escritor eclesiástico, Tertuliano, cita uma palavra que Jesus teria dito: "Ninguém pode alcançar o Reino dos céus, sem haver passado pela tentação" [8]. A palavra com autoridade, que brota das Sagradas Escrituras. Elas são as armas da justiça (2Cor 6,7) que o Senhor nos concede para vencer o Maligno. Assim seja.


[1 e 2] JOÃO CASSIANO, Conferências 1 a 7, Mosteiro da Santa Cruz, Juiz de Fora MG, 2003, pp. 181 e 205.
[3] Umberto ECO, Il nome della rosa, Tascabili Bompiani, Milano, 2002, p. 391.
[4, 5, 6 e 7] Anselm GRÜN, Convivendo com o mal. A luta contra os demônios no monaquismo antigo, Vozes, Petrópolis, 2003, pp. 36; 49-50; 52; 57; 58.
[8] Tertuliano, De baptismo XX, 2; citado por Joachim Jeremias, Las palabras desconocidas de Jesús, Sígueme, Salamanca, p. 80.

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